Em uma manhã de trabalho cheguei mais cedo e pude tomar um café antes de iniciar minhas tarefas. Sentei-me na mesa já separando minhas coisas e comecei a ouvir a conversa de meus pares sobre assuntos diversos. De repente fiquei petrificada com um frase: “Ah, eu nunca li um livro inteiro na vida…” Meu Deus! Quem disse? De onde vinha isso? O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete (Aristóteles deve ter escutado algo assim para escrever isto…). Devia ser brincadeira… Continuei paralisada segurando o copinho de café, quase derramando tudo de tanto espanto, mas ouvindo mais atentamente este absurdo dito dentre as banalidades de uma manhã de segunda-feira. Para meu espanto era verdade: meu colega, com curso superior, nunca lera um livro sequer. Indignada, ainda tive a petulância de perguntar como fora o ensino médio deste colega… Ele riu, sem nem sequer perceber minha impertinência, respondendo que lera apenas resumos prontos e nunca obras originais. Ele nem conhecia os limites de sua própria ignorância, achando que sabe tudo, e se privando de inúmeras chances de aprender. Era a doença de ignorar a própria ignorância. Atualmente meu colega faz uma pós-graduação e segue lendo resumos prontos pois, afinal, como as obras originais são complicadas! Para que isso, não é? É melhor viver a profunda ilusão que se aprende e, nós, engolimos a ilusão que pessoas assim sabem e são qualificadas.
Pode parecer absurdo que um colega já formado, graduado e com títulos nunca tenha lido um livro… Mas é algo tão comum que, se todos os que se enquadram nesta categoria assumissem esta condição, ficaríamos perplexos MESMO. Quanto mais estudamos, mais fácil se torna evidenciar a ignorância principalmente a nossa. Quanto mais adquirimos conhecimento, mais entendemos nossa necessidade de saber e as certezas absolutas e a falta de interesse pelo saber gritam ao nosso redor; isto é uma ferrugem para a humanidade e, se educar é caro e trabalhoso, imagine ter uma sociedade de profissionais e famílias sem crítica e cultura.
A realidade é que ninguém precisa assumir um absurdo destes para mostrar que não tem cultura ou repertório; aliás, quem assume esta condição publicamente assina não só o rótulo de inculto mas também de limítrofe ou burro mesmo (ninguém precisa saber de nossos podres, certo?). Oscar Wilde, em uma de suas citações, pontuou bem o comportamento humano ao dizer que somos tão treinados a esconder nossa própria ignorância como somos treinados a sorrir para esconder nossas lágrimas. Quem não atinge o limiar de conhecer sua própria ignorância encontra-se no limiar terrível do déficit de inteligência.
"Os Retirantes", de Cândido Portinari, acervo do MASP (São Paulo). A seca, a emoção, o sofrimento com toda brasilidade no estilo do pintor brasileiro... Como a seca nordestina é narrada aos jovens? Fala-se sobre as correntes migratórias, fome e impacto econômico nos locais onde estas pessoas foram procurar trabalho?
A ignorância está espalhada na vida cotidiana, sem que você precise constatar que ninguém conhece nada sobre o panorama político do país antes da crise atual, ou que você pergunte sobre grandes músicos e artistas do país. Não tente fazer com que digam sobre Getulio Vargas, Jânio Quadros ou a Ditadura Militar. Também não tente fazer com que elogiem Portinari ou que narrem o problema da seca nordestina e seu impacto para o país no último século. Nunca pergunte também sobre a Transamazônica e o drama de Serra Pelada… Cuidado! Nunca tente saber sobre o ciclo do ouro no Brasil, desde o Brasil Colônia e, muito cuidado mesmo, pois estas perguntas fazem mal à saúde (à sua saúde… Nestas horas a ignorância é uma bênção).
Getúlio Vargas... "o homem que era capaz de tirar as meias sem tirar os sapatos..."O político hábil e escorregadio, populista, que contagiou massas... Será que conhecer o populismo não traria bases políticas para se analisar o contexto atual do país?
Juscelino, Jânio Quadros - uma era da política brasileira soterrada em livros não lidos.
A Ditadura Militar Brasileira e a censura... Nossos jovens vão para a graduação sem saber sobre nosso país.
Serra Pelada por Sebastião Salgado... O que é Serra Pelada? E esse Sebastião Salgado? E fotografia é arte no Brasil?
Você pode argumentar que a geração atual é ignorante por excesso de informação; a informação é distribuída em massa, de forma muito rápida e sem filtros. O cidadão pode não dispor de elementos de formação adequados para filtrar e selecionar o que é pertinente. Sim, há uma instrumentalização para difundir informação que não informa nem educa os indivíduos. A internet e os meios de comunicação em massa nunca serão substitutos de escolas, universidades, bons professores, educação em família e livros! Sim, livros nunca caem de moda, mesmo que sejam digitais.
Nada mais assustador que a ignorância em ação.
J.W. Goethe
A rotina e as conversas banais mostram ainda, que pouco se sabe sobre o mundo e sobre grande movimentos mundiais. Sentada, com meu copinho de café de sempre, ouvindo Nina Simone no meu iPhone, já fui abordada por um colega que me perguntou o que eu ouvia. Respondi com naturalidade, exercitando a resiliência, pois se observarmos a linguagem corporal, quem trabalha com fones de ouvido, raramente gosta de ser interrompido neste momento específico. Deve-se destacar aqui que, intromissão na vida alheia é um esporte bem comum no dia a dia… Trata-se de uma das formas mais irritantes de interação social com falta de conteúdo. Neste momento eu escutava Mississippi Goddam, e disse, também com naturalidade, que se tratava de uma canção política, uma grande obra-prima, emblemática na luta racial nos EUA. Meu colega disse: “Nossa, Nina Simone é legal, mas não conheço esta música…”. Coloquei, então, para que ele ouvisse, já concentrando-me para não demonstrar intolerância para com a pessoa. Ele não teve a hombridade de dizer que achou estranho ou que não gostou, pois a mediocridade produz pessoas orgulhosas demais para assumir a estranheza diante do novo. A ignorância e a arrogância são inseparáveis. Ainda, conversando, ele não soube mencionar nenhuma canção ou álbum de Nina e mais, não mencionou nada de Jazz ou outras divas da época. Era mais um comentário vazio. A humanidade erra por ter a sua consciência submersa na ignorância.
Gandhi lutando pela liberdade e pela paz... algum de nossos jovens aprende de fato o que ocorre no mundo?
Todos erguem as bandeiras das minorias mas desconhecem o quanto no mundo já foi feito por tais bandeiras, as guerras já travadas, os líderes que já faleceram em nome de muitas causas. Todos querem liberdade, mas quem já lutou por liberdade? Alguém desta geração Y conhece a história de Gandhi? Todos querem paz, porém quem consegue conversar de uma forma mais adulta e profunda sobre as inúmeras lutas travadas em nome da paz? Todos são contra o racismo, mas quem consegue falar sobre quem já viveu e morreu na luta racial e como se deu esta luta nas diferentes partes do mundo no último século? Todos querem um país melhor, mas quem conhece a história de nosso país para narrar como chegamos até este ponto crítico de crise que enfrentamos atualmente? Por fim, todos querem educação, mas não adianta termos escolas se nossos alunos não lêem livros e ainda dizem isto com naturalidade como se fosse um fato normal e coerente para um profissional de nível. A asneira é sempre faladora e a maior pobreza é a ignorância pois os ignorantes são aqueles que se desencaminham e se deixam manipular facilmente. Por isso é possível dizer que nossa sociedade tem uma massa falida: não tem educação e não tem perspectivas de ter, pois se, mesmo em esferas privilegiadas, não se sabem para que servem livros? O que pode-se esperar nas próximas décadas destes jovens que estamos formando e lançando no mercado de trabalho?
Muitos devem viver situações como as que coloquei acima, pinceladas da rotina e uma constatação da realidade: quem tem um pouquinho mais de cultura sofre e precisa sobreviver não às custas de preparo técnico mas de resiliência, abrindo mão de virtudes, para ser generoso, fatalmente “falso gentil” e persistente para sobreviver em um ambiente poluído.
A ignorância incomoda e o óbvio incomoda mais ainda. Imagine o desenvolvimento de uma criança pequena, que entende que passarinhos voam. A criança entende que um urubu é passarinho preto (ele voa…), tucano é passarinho bicudo (também voa…), pomba é passarinho (pois voa) e assim vai. Mas, quando esta mesma criança vai ao aeroporto e vê um avião, ela pára e pergunta o que é. Não parece passarinho e voa. Pela primeira vez ela entende que tem coisa que voa e não é passarinho. Esta criança vai ver pipas, balões, robôs, dobraduras de papel, pára-quedas e outras coisas que voam e não são passarinhos. A criança cresce, associa e abandona o óbvio com educação e apoio familiar. Infelizmente no nosso cotidiano temos que suportar pessoas adultas, trabalhando, que nunca abandonaram o óbvio - acreditam que tudo o que voa é passarinho e saem repetindo que tudo é passarinho e nem discrimina se é preto, bicudo ou avião… Infelizmente você vai ter colegas, chefes e subordinados dizendo que avião é passarinho sem duvidar desta afirmação.
Passarinho e avião... Uma criança bem educada de dois anos conhece a diferença mas muitos adultos no mercado de trabalho e nas universidades não conhecem. "Tudo que voa é passarinho..."
"O óbvio é o mais difícil de se enxergar"
Clarice Lispector
Todos temos que viver mas é muito difícil não se incomodar, principalmente é muito difícil não perceber. Vivemos a “cegueira branca”, de Saramago (em sua obra "Um Ensaio sobre a Cegueira"), como “um mar de leite” que se alastra como uma epidemia, e coloca seus infectados em uma quarentena que desvenda aos poucos as características primitivas do ser humano. Na obra de Saramago, apenas uma mulher mantém sua visão secretamente e observa os sentimentos que acontecem nesta quarentena, tais como: poder, obediência, ganância, carinho, desejo, vergonha, dominadores e dominados e subjugadores e subjugados. Saramago mostra, através desta obra intensiva e sofrida, as reações do ser humano às necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos também a refletir sobre a moral, costumes, ética e preconceito através dos olhos da personagem principal, a mulher que vê, que se depara ao longo da narrativa com situações inadmissíveis. Vivemos tempos inadmissíveis, onde poucos vêem o verdadeiro cenário brutal da realidade do conhecimento humano. Vivemos toda a brutalidade da ignorância, falta de educação ou a formação de profissionais de conhecimento “raso”, que desmorona em duas frases de conversa. Não há sensibilidade na vida cotidiana pois para sentir determinadas dores é preciso ser maduro e é impossível esperar maturidade de quem nunca irá diferenciar um passarinho de um avião.
Homem ignorante, mundo às escuras.
A obra de Saramago acaba quando subitamente, exatamente pela ordem de contágio, o mundo cego dá lugar ao mundo imundo e bárbaro. No entanto, as memórias e rastros não se desvanecem. Já vivemos este mundo mas sem as memórias e rastros que deveriam permanecer para lutarmos para um outro futuro. Livros que não são lidos, músicas jamais ouvidas, a humanidade não tem passado, não tem história e tem um futuro incerto com perspectivas ruins. O mercado já reflete esta situação: vagas qualificadas que não conseguem ser preenchidas, candidatos com diplomas sem valor e pessoas incapazes de fazerem gestão e desenvolver pessoas pois elas mesmo não se desenvolvem.
Após tantos cafezinhos e conversas paralelas (mesmo contra minha vontade muitas vezes, afinal a resiliência é um exercício diário e a tolerância também) apenas prefiro acreditar que uma pessoa é muito mais o que ela oculta do que ela pode mostrar e, sendo assim, mesmo os mais medíocres podem ter algum potencial e melhorar e também prefiro acreditar mais em pessoas que metas para sairmos de nossa crise política, social e educacional a longo prazo.
"Não pretendemos que as coisas mudem, se sempre fazemos o mesmo. A crise é a melhor benção que pode ocorrer com as pessoas e países, porque a crise traz progressos. A criatividade nasce da angústia, como o dia nasce da noite escura (...). A verdadeira crise é a crise da incompetência... Sem crise não há desafios; sem desafios, a vida é uma rotina, uma lenta agonia. Sem crise não há mérito. É na crise que se aflora o melhor de cada um..."
Albert Einstein
do site obvious
beijos e carinho, bell