Metade
Que a força do medo
que tenho
Não me impeça de
ver o que anseio
Que a morte de tudo
em que acredito
Não me tape os
ouvidos e a boca
Porque metade de
mim é o que eu grito
A outra metade é
silêncio
Que a música que
ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Pois metade de mim é partida
A outra metade é saudade
Que as palavras que falo
Não sejam ouvidas como prece nem repetidas com
fervor
Apenas respeitadas como a única coisa
Que resta a um homem inundado de sentimentos
Pois metade de mim é o que ouço
A outra metade é o que calo
Que a minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que mereço
Que a tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Que o espelho reflita meu rosto num doce sorriso
Que me lembro ter dado na infância
Pois metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade não sei
Que não seja preciso mais do que uma simples
alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o seu silêncio me fale cada vez mais
Pois metade de mim é abrigo
A outra metade é cansaço
Que a arte me aponte uma resposta
Mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar
Pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Pois metade de mim é plateia
A outra metade é canção
Que a minha loucura seja perdoada
Pois metade de mim é amor
E a outra metade também
Oswaldo Montenegro
lombrah
Metade
Acordes de um Réquiem
os corredores são sombrios, frios...
sem vida, sem cor, sem calor...
os corredores são longos, estreitados com a dor...
são longos mas não o suficiente para acolher a todos os pacientes...
os gemidos são ensurdecedores, amedrontadores como o silvo da serpente...
são gemidos de desespero, de dor, de sofrimento. É o uivo dos umbrais...
Lá de fora ecoam sirenes de ambulâncias, de viaturas de policiais...
sirenes de desespero, sirenes de esperança, serenes apressadas, angustiadas.
Lá de fora brotam cores de harmonia, de luz de amor...
cores trazidas pelas da esperança nesse momento de dor.
A saúde também agoniza junto com o paciente, exaurida...
as necessidades do paciente não podem ser supridas...
faltam condições mínimas de atendimento, de ungüento...
faltam médicos, profissionais burocráticos, enfermeiros...
falta tudo; e na falta de todos padece o doente.
A doença no Brasil é vexatória...
a doença torna-se constrangedora, predatória...
a doença faz do paciente uma vitima; vitima da falta de condições do sistema da saúde.
vejo a saúde padecendo juntamente com um amontoado enorme de doentes...
assisto a saúde enraizando-se como um privilégio de poucos...
vejo a luz da esperança carregada apenas pelas cores da utopia...
a saúde não existe... existe apenas uma maneira paliativa de assistência para alguns
poucos doentes em seu desatino...
O lixo hospitalar mistura-se aos escombros da dignidade humana...
Saúde é dejeto que não pode ser reciclável.
Saúde é bem precioso apenas nas empresas hospitalares.
Quando proporcionam lucros. Grandes lucros...
A mercantilização da saúde exclui aqueles que já foram anteriormente excluídos.
Exclui aqueles que já perderam a dignidade por um nada no mundo.
Autoria: Valdemar Augusto Angerami - Camon
Ao deus desconhecido
Oração ao DEUS desconhecido.
Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar para
frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares
festivos para que, em Cada momento, Tua voz me pudesse chamar.
Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras:
"Ao Deus desconhecido”.
Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos
sacrílegos.
Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo.
Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-lo.
Eu quero Te conhecer, desconhecido.
Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero Te conhecer,
quero servir só a Ti.
Friedrich Nietzsche
Experiência de unidade fundamental
por Krishnamurti:
No primeiro dia em que me vi nesse estado, e mais consciente
das coisas ao
meu redor, tive a primeira experiência extraordinária. Havia um
homem
consertando a estrada; aquele homem era eu; a picareta era eu; a picareta
que ele segurava era eu; as próprias pedras que ele estava quebrando eram
uma
parte de mim; a tenra relva era o meu ser, e a árvore atrás do homem
era eu.
Podia sentir e pensar como o homem que consertava a estrada e podia
sentir o
vento que passava pela árvore e também podia sentir a pequenina
formiga na
relva. Os pássaros, a poeira e até o barulho eram parte de mim.
Naquele momento
um carro passou a alguma distância, eu era o motorista,
o motor e os pneus; à medida
que o carro se distanciava de mim, também eu
me distanciava de mim. Eu estava
em tudo, ou melhor, tudo estava em mim,
o animado e o inanimado, as montanhas,
o verme e tudo que respira.
Fiquei o dia todo nesse estado feliz.
do livro: Mary Lutyens, Vida e Morte de Krishnamurti, Editora Teosófica
Fernando Pessoa
Autopsicográfia
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor
Se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu
Tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor,
Se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca
Escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas...
***
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura
dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
***
Se eu morrer muito novo, ouçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.
***
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha quer não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca.
***
O gênio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma
anormalidade;
representam, de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao
meio.
***
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
Começo a Conhecer me
Não existo.
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
A luz e a escuridão
A luz e a escuridão
Eis que se foram as nuvens
E ficaram os céus
Eis que se foram os dias
E ficaram a escuridão
O dia em degrade com a solidão
Se firma como elos
De polos tão distintos
Interligados ao seu próprio e absoluto destino
A luz e a escuridão
Lombra Júnior